quinta-feira, 24 de outubro de 2013

Doutora Tereza Primeira Delegada do Paraná

Marcelo Andrade/Gazeta do Povo / Tereza dos Santos foi promovida à delegada em 1975, por força de decisão judicial
fonte:gazeta do povo
Há 38 anos, mulher nenhuma podia ocupar cargo de chefia na Polícia Civil. Até uma curitibana boa de briga ser alçada ao posto de delegada
O sonho de infância de Tereza Ermelino dos Santos era ser policial. Uma perspectiva pouco plausível para uma jovem negra e pobre nascida na provinciana Curitiba dos anos 40. Mas ela foi à luta. E conseguiu ir mais longe do que imaginava. Em 1975, ano em que a ONU instituiu o Dia Internacional da Mulher, Tereza se tornou a primeira delegada de polícia da história do Paraná. Sinal de que a sociedade da época começava a dar mais atenção para os anseios feministas.
A carreira policial começou uma década antes, em 1964, quando Tereza ainda estava no colegial. Entre o início como agente de segurança até a aposentadoria 30 anos depois, ela passou por diversas unidades da Polícia Civil. Como delegada, o primeiro posto foi em Londrina. As datas, confessa, não lembra muito bem. Passou também por municípios do interior, distritos de Curitiba e setores especializados. Alguns desses locais, como as Delegacias de Menores e de Costumes, nem existem mais.
Os problemas que hoje tomam boa parte do tempo e da energia da polícia praticamente não existiam. “Tráfico de drogas, por exemplo, era uma coisa rara. Mas acho que a essência da profissão não mudou”, observa. Segundo ela, o trabalho básico sempre foi receber a denúncia, investigar e prender.
Sem sossego
Cedo, porém, Tereza percebeu que a ideia de uma mulher em cargo de chefia era um tanto quanto absurda para figurões da segurança pública. Como na época a lei permitia que apenas homens fossem promovidos além do posto de comissário (hoje extinto), ela virou delegada por meio de um mandado de segurança da Justiça.
Mesmo depois de empossada, no entanto, não teve sossego. “Sofri ‘tortura’ por parte da cúpula [da polícia]. A cada quinze dias vinha alguém dizer que eu podia ser exonerada, que a qualquer momento podiam tirar o meu cargo”, conta. Dentro da delegacia, porém, a coisa era diferente. “Mesmo no trato com os bandidos, ser mulher não era um problema para mim. Com meus subalternos, muito menos. Todos sempre me respeitaram”, garante.
Mesmo depois de deixar a polícia, Tereza não parou de trabalhar. Até pouco tempo atrás, esta senhora de 70 anos ainda atuava como advogada. Após quase 50 anos dedicados à lei, resolveu se aposentar e hoje vive em Aracaju (SE). De Curitiba restaram a saudade dos amigos e as boas histórias para contar.

terça-feira, 15 de outubro de 2013

Ao Mestre com Carinho -

sábado, 12 de outubro de 2013

"Negro não é só melanina, é atitude política", diz Ferréz em Frankfurt

Os questionamentos sobre o que poderia ser visto como racismo na lista de escritores brasileiros na Feira de Frankfurt, levantados pela imprensa alemã deixaram de lado um grande defensor das causas negra e da periferia no Brasil, o escritor Ferréz, um dos autores levados ao maior evento editorial do mundo pelo governo brasileiro.

A imprensa alemã destacou ao longo das últimas semanas que o romancista Paulo Lins, autor de "Cidade de Deus", era o único negro da lista -- ao que Lins respondeu, em entrevista à Folha, que "se há racismo não é na seleção de autores, e sim na sociedade, que permite a poucos negros serem escritores, jornalistas, engenheiros ou médicos".
Divulgação/Ferrez

O escritor brasileiro Ferréz
Neste sábado (12), após contar em debate no pavilhão brasileiro que foi confundido na Alemanha com árabe ou judeu, por causa da barba longa e do rabo de cavalo, Ferréz disse à Folha: "Sou mais negro que ele [Paulo Lins], falo mais do negro que ele. Ser negro não é só raça ou melanina, é atitude política perante o mundo. Nesse sentido, o Marçal [Aquino] é negro, o Lourenco [Mutarelli] é negro", disse.
Filho de negro com branca, Ferréz disse não ter se incomodado por ter sido deixado de fora do debate. "Paulo Lins defendeu muito bem a causa."
Durante o debate, contou que percebeu reações de identificação de minorias étnicas durante a passagem por Frankfurt, quando visitou escolas. "Um menino negro de 17 anos, com a camiseta do [rapper] Tupac, falou pra mim: 'Respect'. Não precisa nem de tradução, né?"
Ferréz, que acabou de ter contos traduzidos na Alemanha, se surpreendeu ao saber que a letra de seu rap "Judas", de 2001, vem sendo estudada em escolas alemãs.
"Nem faço mais rap. Acho que ensinam isso para as crianças daqui desistirem da leitura, já que elas não entendem, igual fazem com 'Memórias Póstumas de Brás Cubas' no Brasil", brincou, para um auditório lotado -- com a abertura da feira para o público geral, neste final de semana, pela primeira vez o espaço de debates do pavilhão brasileiro se encheu de estrangeiros.
ANGÚSTIA
Na conversa com ele e a escritora Patrícia Melo, a mediadora tentou encontrar pontos em comum nas duas obras, questionando-os sobre como retratam o medo e a angústia.

"O exercício literário é um exercício de resistência, de olhar criticamente para a sociedade, localizar contrastes e diferenças sociais", argumentou a autora de "Inferno". "A angústia social se junta à angústia do autor com a busca por formas, de respostas para sua própria prosa."

Ferréz disse sentir falta de autores que ambicionem escrever para o Brasil, em vez de para o mundo. "Quero formar leitores. Nesse sentido me igualo ao Evangelho, quero salvar pela palavra. É importante participar do processo de educação num país em que 70% do povo não lê direito, enquanto as as pessoas estão lá falando de alta literatura."

Já Patricia afirmou não ter o costume de pensar em quem é o leitor. "O leitor é uma figura metafísica, de repente entra na sua vida. O Ferréz é engajado socialmente, faz um trabalho importante com crianças. Não tenho tanto esse engajamento, minha ideia de leitor é mais de me olhar no espelho, para a leitora que também sou."

No final da tarde de hoje (12), Patricia Melo receberia um prêmio literário alemão, o LiBeraturpreis, dado a cada ano pelo instituto litprom a uma mulher da África, Ásia, América Latina ou países árabes. Ela foi a escolhida pela edição alemã de seu livro "Ladrão de Cadáveres", que, segundo o júri, é "um romance elegante, malicioso, sarcástico sobre as mudanças dos padrões de moral". Lançado na Alemanha, o romance ocupou, em junho, o primeiro lugar no ranking da revista semanal alemã "Die Zeit" que publica mensalmente um ranking com os melhores livros policiais.

VIOLÊNCIA
Ferréz criticou, em entrevista à Folha, a violência da polícia no governo Alckmin ao ser informado sobre investigação do Ministério Público de São Paulo, que revelou que a facção criminosa PCC (Primeiro Comando da Capital) planejou a morte do governador.

"Não tem que matar, o que tem que fazer é convencer o Alckmin a fazer a polícia parar de matar", disse.
publicado: folha de são paulo

segunda-feira, 7 de outubro de 2013

Documentário: Mestre Didi Arte Ritual


Ouvindo: Onde ela Mora, Lápis



Hoje e Sempre, LÁPIS!



Palminor Rodrigues Ferreira (1942-1978)

"Nenhuma borracha apagará o que este "Lápis" escreveu." (J.Gilberto Tatára)

Palminor Rodrigues Ferreira, o Lápis, nasceu a 5 de outubro de 1943, vigésimo primeiro filho - caçula, nasceu com lesão cardíaca. Sua mãe, Maria Luiza, mais conhecida como Dona Mariquinha, queria que ele fosse sargento, mas ele gostava mesmo era de cantar. Com 12 anos já tocava pandeiro na Rádio Marumbi. Seu irmão Lalo, também músico, presenteou-o com um violão.
Em casa o chamavam de Pami. Pami aprendeu a tocar seu violão, através de um método, depois de desafinar muitas vezes o violão de Lalo. Aos 18 anos compunha sua primeira música, "Vestido Branco". Lápis concluiu apenas o ginásio, falava corretamente o português, sem vícios de linguagem. Seu círculo de amizades era vasto, compositor de intelectuais, profissionais, desocupados e indigentes. Casou-se muito jovem, aos 19 anos, com uma suíça de nome Romana, com quem teve dois filhos, Alexandre (o Grafite) e Palminor Júnior.
Sempre dizia: "Se faço música para o povo, tenho que entender e viver suas necessidades. Isso faz parte da vida."
Vivia por aí, frequentando lugares onde podia encontrar motoristas, trabalhadores e outras pessoas da chamada classe produtiva, vivendo o cotidiano. Fazia shows beneficentes, para arrecadar verba para as crianças desamparadas. Além de cantar e tocar nas penitenciárias.
Lápis era atencioso com todos e sempre procurava ajudar novos cantores, talvez por isso mesmo tenha morrido sem dinheiro, mas com muitos amigos.
Cantor-compositor, era funcionário da antiga Empresa de Correios e Telégrafos - atribuiu-se seu apelido desde então: fino, alto e preto - igual a Lápis.
Foi o primeiro cantor/compositor a depor no Museu da Imagem e do Som. Obteve classificação por duas vezes consecutivas no Festival Internacional da Canção no Rio de Janeiro, numa das vezes pegou a 6ª colocação com a canção "Roteiro". Classificou-se no Festival "Punta del Leste procura su canción". Participou e trabalhou com muita gente como o Quateto Cido, acompanhou Eliana Pittman, apresentou-se ao lado de Rosinha Valença, na estreia do Casa Grande a convite de Sérgio Cabral. Gravou alguns teipes para a Rede Globo, fez turnê pela Europa onde se apresentou em 86 boates (aos 24 anos).
Parceiro de Paulo Vítola, Rubens Rolim, Nicolatti, Micelli, Jorge Segundo, Marco Aurélio entre outros.
Produziu músicas para os Originais do Samba, Eliana Pittman ("Silêncio"), Dóris Monteiro (gravou sambas-enredo:"Liberdade" e "Volta do sertanejo"). Apresentou-se com Jorge Ben, no Coutry Club, acompanhou por mais de um ano a cantora Maria Odete. 
Lápis gravou um LP, "Dia de Arlequim" e com o conjunto "Bitten-4", formado por Fernando, Anadir e Dalton, gravou "Manhã de Sol" - na Sam Jazz Quintet, de Curitiba. Morou algum tempo no Rio de Janeiro, fazendo parte deste conjunto, que era composto por músicos paranaenses que, na época, se apresentavam na TV Tupi.
Ganhou o 1º Festival Paranaense de Música Popular Brasileira, realizado pela TV Paranaense com a canção "Roteiro". Um dos mais famosos shows foi o "Funeral para um Rei Negro" que apresentou no Teatro Guaíra.

Anjo negro: gozo da cor


Eliana Maria Delfino1; José Tiago Reis Filho2; Sílvia Regina Gomes Foscarini3; Wanda Avelino4
Círculo Psicanalítico de Minas Gerais

RESUMO
Analisam à luz da psicanálise a problemática racial tendo por base a peça teatral Anjo Negro, de Nelson Rodrigues. Apontam para as dificuldades e contradições que operam nas realidades insuportáveis e excludentes fazendo com que, dessa forma, o negro renegue a própria cor.

Palavras-chave: Preconceito, Discriminação, Recalque, Trauma, Gozo.
ABSTRACT
Based upon the play of Nelson Rodrigues, “The Black Angel”, the authors analyse racial problems in the light of psychoanalysis. They point out the difficulties and contradictions that interact with the unbearable and excluding realities which cause a black individual to deny his own colour.

Keywords: Prejudice, Discrimination, Repression, Trauma, Colours enjoyment.

Nelson Rodrigues desejou escrever a peça Anjo Negro desde que sua sensibilidade foi tocada ao perceber o preconceito de que o negro é alvo na sociedade brasileira e a existência de preconceito no negro em relação a outro da mesma cor. A peça foi escrita em 1946, mas dentre todas as suas obras é a que foi encenada em apenas dois períodos, em 1948, sob a direção de Ziembinski, e em 1994, sob a direção de Ulisses Cruz. Na primeira montagem, três meses antes da estréia, a peça foi interditada pela Censura Federal. O teatro de Nelson Rodrigues é tido e havido como malvisto, mal falado, mesmo assim, suas peças vêm sendo representadas e adaptadas para cinema e televisão, o que tornou sua obra conhecida e reconhecida.

Anjo Negro é apresentada em três atos. O cenário, conforme concebido pela produção, apresentava-se sem nenhum caráter realista: um pequeno caixão de seda branca ocupa o andar térreo da casa onde dez senhoras pretas se postam em semicírculo e formam um coro, como no teatro grego. No segundo andar, duas camas, uma delas quebrada, ajudam a compor o cenário. No primeiro andar, Ismael, o negro que representa o anjo, veste um terno branco, engomadíssimo, e calça sapatos de verniz. No andar de cima, Virgínia, sua esposa, branca, traja luto. “A casa não tem teto, para que a noite possa entrar e possuir os moradores. Ao fundo, grandes muros que crescem à medida que aumenta a solidão do negro” (p.125). É nesse cenário que se inscreve o drama, que também reproduz cenas da infância do autor em Aldeia Campestre, Rio de Janeiro, onde morou. Quando criança, Nelson não perdia velórios. O drama humano o instigava: ora curioso por capturar o desespero de mães que choravam a perda dos filhos, ora curioso para perceber a sinceridade ou não das viúvas que choravam a morte dos maridos.

O que, na peça, é fadado ao silêncio? O que não pode ser mostrado e, ao mesmo tempo, é explicitado no texto? Nelson aponta para a problemática racial em que, certamente, se articulam os subsídios para uma teoria social do Brasil, onde se destaca a violência como fator de base dos fundamentos estruturais do modelo étnico-social brasileiro. A peça explicita a vivência de amor/ódio num casal inter-racial e a ambigüidade diante de sua linhagem mestiça. O estilo poético-realista de Nelson Rodrigues revela, de maneira perturbadora, temas adormecidos no inconsciente. Ele revolve esse universo profundo do espectador trazendo à consciência o recalcado e utiliza-se da tragédia para falar do racismo. Assim, remete-nos ao drama grego: a tragédia, pois somente o trágico daria conta de desvendar essa realidade brasileira relegada às trevas – o racismo. Algo da ordem do trágico, tal qual é explicitado no drama grego, pode estar muito próximo de nós, se considerarmos que, enquanto humanos, vivenciamos as emoções que o perpassam.

Virgínia assassina um a um os filhos que trazem em si a marca da mestiçagem e odeia a filha, fruto do adultério com o cunhado. Ela tem preconceito, mas mesmo assim sente-se atraída pelo marido negro, que vive o complexo da própria cor. Ismael é testemunha dos crimes da mulher e acreditava que esses crimes os uniam ainda mais. Ambos recusavam a mestiçagem, os traços negros na pele. Tal qual na tragédia grega, a maldição atinge a descendência. A mãe de Ismael o teria amaldiçoado por este repudiar a própria cor e culpá-la por ser negro, problema que tentou disfarçar tornando-se um médico competente e rico. Acreditava que, alcançado status, poderia encobrir o fato de ter a pele negra.

Elias, irmão de Ismael, era branco e cego. Na infância, Ismael o cegou, vingando-se dele por ser branco e bonito. No velório do terceiro filho do casal, Elias conhece Virgínia, apaixona-se por ela e dessa relação nasce Ana Maria, branca, que será criada por Ismael como filha. Ismael a cega para que ela não descubra que ele é negro e, dessa forma, vivem uma relação marcada por um “ar incestuoso”.

A peça nada esclarece sobre o pai do anjo negro. Que versão do pai teria marcado e entrado em jogo no destino de Ismael? O fato de ele compactuar com o assassinato dos filhos marca a possibilidade da sua não nomeação pelo pai, fato que dificulta a todo homem se nomear enquanto pai. “Pater incertus est, mater certíssima”. Sendo o pai incerto, a criança fica na dependência da fala da mãe, que pode instituí-lo ou não na função simbólica de paternidade. E que peso esse desconhecimento teve na sua imagem de homem negro?

Ismael não consegue disfarçar nem superar as contradições de um corpo marcado insistentemente pelo efeito da voz que, em seu ato complexo de vocação e invocação, reproduz o efeito do olhar, inscrito historicamente por um passado escravista. Paralisado, ele não consegue alçar à condição de desejante, sujeito este capaz de sustentar suas escolhas, com todas as particularidades que uma posição assim nos revela e nos exige em termos de renúncia.

O que faz uma pessoa renegar a própria cor? Este é o questionamento rodrigueano expresso pela voz de Elias.

Em “A Negativa”, Freud (1925) pontua a propriedade de certos conteúdos recalcados que só podem ter acesso à consciência sob uma única e importante condição: a de serem negados. No processo de negação – Verneinung –, responder com o não evoca a idéia de rebater ou rejeitar algo, denotando indício da presença e resistência de material recalcado e muitas vezes deixado de lado pela negação verbal ou intelectual. O que é importante nesse processo é o efeito da suspensão do recalque, mesmo que isso não signifique aceitação do que está recalcado. A denegação aponta, faz surgir o que não é aceito, o que a difere do mecanismo da recusa – Verleugnung –, no qual o que está em jogo é a veracidade da existência do objeto, e o que se faz presente é um diálogo sobre a existência ou não do conteúdo negado – “Eu sei, mas mesmo assim...”.

Importante também é a causação do efeito da representação do significante na constituição psíquica e o efeito traumático que o impacto de alguns desses significantes exerce sobre o sujeito, especialmente aqueles que expressam realidades insuportáveis e excludentes como no caso do negro, marginalizado social, cultural e intelectualmente.

Talvez seja importante falarmos um pouco sobre a questão traumática e de como pensamos em articulá-la a situações vividas pelo negro. Vejamos, a princípio, o conceito de trauma na obra freudiana. Este foi primeiramente descrito sob o ponto de vista energético. Em seu texto Projeto para uma Psicologia Científica (1895), Freud descreve o trauma pelo viés de uma realidade factual de cunho ameaçador, um estímulo externo que, ao romper as barreiras de contato, cuja função é proteger o psiquismo dos excessos energéticos, coloca em risco a sobrevivência do indivíduo. A teoria da sedução faz sua aparição neste período e ganha então o estatuto de fator desencadeador da neurose. Mais tarde, em 1897, numa carta a Fliess (Carta 69), reconhece a teoria da fantasia e a idéia do trauma/sedução perde relevância. Em 1920, o trauma ressurge como trauma da pulsão, carente de representação no aparelho psíquico, apontado no texto Além do Princípio de Prazer, referendado pela pulsão de morte e pela repetição.

Se em Freud, como vimos, o trauma apresenta-se como sexual, para Ferenczi (1933), o trauma se constitui como uma nova forma de interpretação, que não só reafirma a presença de excesso de excitação e a sua não-representação psíquica, mas, sobretudo, que se refere à realidade de um abuso, seja ele de ordem sexual ou de ordem interna ou externa. O desmentido faz sua aparição e se desenvolve como uma importante expressão de formação traumática.

Em Lacan (1985), o trauma é situado enquanto articulação da função sexual com o discurso do Outro, fazendo com que a atribuição recuse ao sujeito os outros significantes, ou seja, a partir do momento em que o sujeito recebe uma palavra atributiva, este se vê dividido entre a palavra recebida e todas as outras que ficaram em suspenso. A percepção não é anulada, mas também não se inscreve simbolicamente na cadeia significante, permanecendo no psiquismo como uma espécie de quisto sempre pronto a irromper. Para compensar, uma nova realidade é criada em substituição àquilo que falta, através do fetiche, do sadismo ou do masoquismo. Não é à toa que Ismael nunca se embriagou e tampouco conseguiu “matar” em si o desejo que tinha por negras. Por que ele cega Elias e Ana Maria? Para que estes não o vejam? Para não verem a si próprios? Para viverem na escuridão? O racismo induz o indivíduo negro a uma covardia diante da verdade que se faz mister assumir, isto é, a aceitação de que se é negro.

Na “Proposição de 1967”, Lacan pontua que a destituição do sujeito é cruel, pois ela o reduz ao silêncio. É o que se observa. O segregado não se pronuncia, vítima da máquina da discriminação. Máquina que o induz a uma passagem para um real insuportável, conduzindo o negro a não dizer de si, mas, muito pelo contrário, a ser dito pelo Outro. Contudo uma questão se presentifica: será realmente que o negro não fala? Ou o desconhecimento é de tal ordem que ele não se dá conta do grito que ficou estagnado na sua garganta? Grito que ressoa, produz restos. E quão ruidosos são os restos. O negro não fala de sua miséria, ele a vive na sua pele, na sua dificuldade de se assumir, enfim, na covardia perante o real do corpo. É vítima da segregação racial instalada pela abjeção da coletividade diante de um real a que a própria sociedade não faz face; sobretudo porque teme abordá-la e desmitificá-la.

Elias procura Ismael portando um recado da mãe: sua maldição. É ele quem vem revelar a condição de negro de Ismael, este que nada diz de seu pai, recusando também a paternidade (simbólica) de Elias a quem, quando menino, cegou, em quem bateu, tornando-se uma figura amedrontadora para este. Nunca perdoou o fato de Elias ser branco, de ser filho de brancos e ter tomado Ismael como pai, o Outro, lugar do código, enigma. É Elias quem realiza o desejo de Ismael de ter um filho branco. Essa é a função de Elias: levar Ismael a se confrontar com a castração, com sua condição de negro. Ele que tudo fez para apagá-la; ele que no dizer de Elias “é todo sensual”.
Bibliografia

CASTRO, Ruy. O anjo pornográfico: a vida de Nelson Rodrigues. São Paulo: Companhia das Letras, 1992.

FERENCZI, Sandor. “Confusão de línguas entre adultos e crianças” (1933). Obras Completas IV. São Paulo: Martins Fontes, p. 97-108.

FREUD, S. “Projeto para uma psicologia científica” (1895). Edição Standard Brasileira das obras psicológicas completas de, v. I., p. 387-529.. Rio de Janeiro: Imago, 1976.

FREUD, S. “A negativa”. ESB, v. XIX, p. 295-300. Rio de Janeiro: Imago, 1976.

FREUD, S. “Além do princípio do prazer” (1920) ESB, v. XVIII, p. 17-85. Rio de Janeiro: Imago, 1976.

LACAN, Jacques. “Proposição de 9 de outubro”. Letra Freudiana, n 0, 1987.

LACAN, Jacques. O seminário, livro 20: mais, ainda. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1985.

RODRIGUES, Nelson. “Anjo negro”. In MAGALDI, Sábato (org.) Nelson Rodrigues: teatro completo. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1981, p. 125-192.

Rua Antonio Albuquerque, 743/805 
30112–010 – Belo Horizonte – MG 

1 Psicóloga. Participante do Fórum do Círculo Psicanalítico de Minas Gerais – CPMG. 
2 Psicólogo. Psicanalista. Membro do Círculo Psicanalítico de Minas Gerais – CPMG. Doutor em Psicologia Clínica PUCSP. 
3 Psicóloga. Psicanalista. Membro do Círculo Psicanalítico de Minas Gerais – CPMG. 
4 Psicóloga. Psicanalista. Membro do Círculo Psicanalítico de Minas Gerais – CPMG.

publicado: periódicos eletrônicos em psicologia

Até depois Mestre Didi

Mastrangelo Reino/Folhapress / Didi, um artista discreto
O artista plástico, escritor, ensaísta e líder espiritual Deoscóredes Maximiliano dos Santos, popularmente conhecido como Mestre Didi, morreu sábado, em Salvador, aos 95 anos. O artista ficou célebre por representar elementos da cultura afro-brasileira em suas obras. Mestre Didi também era conhecido por liderar a comunidade espiritual nagô: era filho de Maria Bibiana do Espírito Santo, também chamada de Mãe Senhora, uma das principais mães de santo do terreiro Ilê Axé Opô Afonjá, de Salvador.
Não costumava falar sobre sua obra nem sobre si próprio. Chegou a expor em Gana, Senegal, Inglaterra e França, além do Guggenheim, em Nova York. No Brasil, ganhou reconhecimento após a 23.ª Bienal de São Paulo, em 1996, quando recebeu uma sala especial.
Era casado com a antropóloga Juana Elbein dos Santos.
fonte: gazeta do povo